É tão comum, que até parece fazer parte da natureza
humana. Vemos, e vivemos, isto a todo o momento. O que não surpreende, que o
filósofo Arthur Schopenhauer já tenha ‘teorizado’ sobre este ‘traço’ tão humano
e que nunca foi tão comum, tão usado como em nossos dias.
Isso se tornou quase uma regra nesse clima de ‘crise’
que vivemos hoje, onde a imprensa marrom nunca esteve tão bem em suas mistificações
e enganações, já que, pelo visto, deve estar achando que os seus dias de gloria
alienante parecem estar com os dias contados, neste momento em que o Brasil passa
por um “novo parto” de onde se espera que saia um pais mais livre, justo e
democrático para todos, efetivamente.
A absolutização do absurdo
Consultado pelo jornalista Vicente Nunes, autor da coluna “Correio
Econômico” (Correio Braziliense, de 02/10/2015), o
professor Simão Davi Silber, da Universidade de São Paulo (SP), diz que o
Brasil conjuga, atualmente, quatro crises: política, econômica, social e moral.
Para o educador, “tudo isso está acontecendo porque o governo perdeu a
capacidade de governar”. A absolutização do absurdo é um grave erro argumentativo,
por mais que seja legítima a reivindicação social de que o Estado deva ser
regido pela justa ordem; caso contrário, “reduzir-se-ia a uma grande banda de
ladrões”, como disse Santo Agostinho em certa ocasião. A justiça é o objetivo
e, consequentemente, também a medida intrínseca de toda política. A política é
mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a
sua origem e o seu objetivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza
ética.
Se, por um lado, a argumentação do professor da USP engrossa o
coro daqueles que legitimamente anseiam por pessoas com integridade capaz de
garantir um exercício adequado e indispensável da autoridade moral; por outro
turno, o educador peca ao “fulanizar” o debate sobre os destinos do Brasil,
elegendo a presidenta da República, Dilma Rousseff, como “bode expiatório”. O
intelectual opta pela estratégia de pensamento mais desqualificada, a saber: argumentum ad personam. Assim explica o citado recurso o filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860), em Como vencer um debate
sem precisar ter razão (1831): “Quando
percebemos que o adversário é superior e que acabará por não nos dar razão,
então nos tornamos pessoalmente ofensivos, insultuosos, grosseiros. […] O
objeto é deixado completamente de lado e concentramos o ataque na pessoa do
adversário, e a objeção se torna insolente, maldosa, ultrajante, grosseira.
Essa regra é muito popular, pois todo mundo é capaz de aplicá-la e, por isto, é
usada com frequência”.
O mesmo mal retórico contamina a reflexão do mencionado jornalista
do Correio Braziliense quando, em tom apocalíptico e pessimista, oferece veredito cabal:
“O Brasil mergulhou em uma paralisia assustadora. Quando se olha para a frente,
em vez de melhora, o que se vê é um buraco sem fundo.” Vicente Nunes carrega
nas tintas para defender sua tese malsinada de culpabilizar Dilma Rousseff pela
crise que atravessamos, enquanto a responsabilidade social não é trazida à
baila para propor soluções conjuntas que possam coletivamente qualificar a vida
de todos os brasileiros:
“O ano de 2015 entrou na sua reta final, mas muitos já o estão
riscando do calendário como se fosse uma praga a ser extirpada. Há quase três
décadas não se via um período tão ruim para o país. A combinação de crise
política com terremoto na economia fez com que o Brasil regredisse pelo menos
três anos, trazendo de volta fantasmas que, pensava-se, jamais voltariam a nos
atormentar. Mas Dilma Rousseff, com sua capacidade de fazer estragos,
abriu-lhes as portas sem a menor cerimônia.”
O
estilo da desculpability
O mal do jornalismo novidadeiro e sensacionalista se encontra na
desvalorização do contexto e da historicidade. Como bem alertou o filósofo
Walter Benjamin (1892-1940) em Experiência e pobreza (1933),
“abandonamos uma, depois da outra, todas as peças do patrimônio humano, tivemos
que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em
troca a moeda miúda do atual”. Uma consulta aos arquivos da imprensa brasileira
nos fez chegar ao artigo “Regeneração”, escrito por Bastos Tigre (1882-1957),
sendo o texto publicado no jornal Correio da Manhã de 09/11/1930. Já
naquela oportunidade, em plena Era Vargas, o jornalista salientava, com
méritos, o conjunto de medidas necessárias para que o país melhorasse
coletivamente, em termos de desenvolvimento progressista: “É preciso curar o
Brasil doente, instruir o Brasil ignorante, saldar as contas do Brasil
endividado e, finalmente, enriquecer o Brasil paupérrimo.”
O jornalismo brasileiro já foi mais sensato na apresentação
informativa e opinativa dos fatos, a considerar pelos destaques feitos neste
artigo. Enquanto o tom argumentativo de Bastos Tigre busca o engajamento de
pessoas em torno de uma causa comum (o êxito nacional), visando a dar um basta
à inércia e à estagnação, Vicente Nunes prefere, por sua vez, adotar um
discurso autoritário, transitando entre a provocação e a intimidação,
desqualificando o nível de conhecimento do outro (no caso, o alvo de sua
ofensiva, Dilma Rousseff).
Estabelece-se, em termos semióticos, um “contrato fiduciário”, em
que o leitor tende a acompanhar as razões do jornalista. Indignado, Vicente
Nunes investe a si mesmo no papel de herói do povo e reveste sua fala de um
“parecer-verdade” que o público desavisado não tem como não sancionar como
verdadeira. Considerando os tempos históricos de Bastos Tigre e Vicente Nunes,
há o consenso de que a sociedade terá de assumir o desafio de viver com ainda
mais parcimônia, menos ostentação e, sobretudo, menos desperdício.
Enquanto Bastos Tigre teve a virtude do accountability pessoal, Vicente Nunes, ao contrário, vem adotando como estilo a desculpability. Trata-se da habilidade de afastar de si a responsabilidade,
culpando os outros, as circunstâncias, ou tudo aquilo que está à volta. É como
vírus ou aplicativo pré-instalado que funciona turbinando o inábil instinto de
defesa. Nascemos com ele e ele está conosco presente na humanidade desde o
início da civilização, o que pode ser percebido em Gênesis, capítulo 3,
versículos 11 e 12: “Perguntou-lhe Deus: Quem te fez saber que estavas nu?
Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses?/Então, disse o homem: A
mulher que me deste por esposa, ela me deu da árvore, e eu comi.”
Marcos Fabrício Lopes da Silva
é professor universitário, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários.
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