A renúncia do primeiro ministro grego, meio que uma
jogada para tentar conseguir uma ‘carta branca’ dos seus eleitores que o
ratificasse no posto, restaurando e/ou ratificando a sua autoridade e poder diluídos na desastrosa negociação da dívida do país, que, pelo visto, não deu certo, é
um prova inequívoca que atesta a incompatibilidade de convivência entre estes dois
princípios enumerados no título.
A Grécia, o lado fraco da corda, foi nocauteada
mesmo já estando ‘beijando a lona’, e o seu representante nesta negociação, o Syriza, que ficou
entre ‘a corda e o pescoço’, capitulou.
É, sobretudo, mais uma vitoria incontestável da comunitária
e solidária “irmã” Alemanha.
"Democracia x capitalismo
A Grécia vive, em
carne própria, a profunda contradição entre capitalismo e democracia. É
revelador que o choque, além de se dar no país da origem da
democracia, se dê também justamente no continente que insistia em afirmar a
compatibilidade dos dois termos, com o Estado de bem estar social.
A integração europeia, que parecia consolidar a autonomia do
continente, expresso numa moeda própria, na verdade estava construindo uma
armadilha, que agora se revela em toda sua crueza: por um lado, a destruição do
Estado de bem estar social, por outro, a da democracia como soberania popular.
Que já estava presente na consulta que levou à unificação europeia: a consulta
era diretamente vinculada à adesão a uma moeda única, com todas as
consequências de que se vê agora em toda sua amplitude.
Governos renunciam à soberania nacional e à soberania popular, sem
que estas sejam substituídas por formas supranacionais de democracia. Como
aceitaram a moeda única, os organismos supranacionais são financeiros. O
Parlamento europeu não tem nenhuma importância, como se vê agora pela sua
ausência total na resolução da crise grega.
Em que consiste a crise grega? Em termos democráticos, de soberania
nacional, um governo eleito pelo povo comprometeu o país com uma série de
acordos – basicamente de empréstimos escorchantes, que consistem na verdade em
tomar dinheiro a juros altos para transferi-los imediatamente aos bancos aos
quais devem cada vez mais dinheiro. Em janeiro deste ano o povo grego decidiu
dar um basta nessa situação e elegeu o Syriza para terminar com as desastrosas
políticas de austeridade.
Mas o governo eleito teve que arcar não apenas com as dívidas, mas
com todos os compromissos contraídos pelo governo anterior, tornando impossível
o cumprimento de saída da austeridade, que não significasse ao mesmo tempo a
saída do Euro, com todas suas consequências catastróficas para o país. Em suma,
um governo comprometeu o futuro do país muito mais além do seu mandato e
cancelou a possibilidade do povo grego decidir sobre seu destino. As decisões
sobre este já estavam dadas.
A Troika europeia não quis saber nada da decisão democrática do
povo grego e sim da cobrança dos compromissos assumidos pelo governo anterior,
derrotado pelo povo grego. A unificação monetária da Europa esvazia assim o
conteúdo democrático do sistema político, fazendo valer unicamente os
compromissos estabelecidos pelo governo grego anterior com os bancos.
O capitalismo, na sua era neoliberal, com a hegemonia do capital
especulativo, se impõe assim sobre a democracia. O povo grego elegeu um governo
para sair da austeridade, em referendo reiterou essa decisão, mas o governo não
teve os meios para realizar essa proposta, atado como está aos compromissos
assumidos anteriormente.
Um exemplo evidente dos postulados de Ellen Meiksins Wood, em seu
clássico livro Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo
histórico (Boitempo Editorial, 2003) sobre a contradição entre os dois
termos. O Estado de bem estar social foi um formato especifico, enquadrado num
determinado marco internacional e numa relação de forças especificas entre as
classes sociais, que permitiu a compatibilização, durante um certo período,
entre democracia e capitalismo. É essa possibilidade que se esgota com a crise
grega para toda a Europa.
De Emir Sader
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