Embora ainda haja certa cultura local
que considera esse ícone da justiça social e humana, motivo
de admiração, e cópia, mundo afora com preconceito, não há como não
admitir que é uma ideia muito boa e justa, garantindo a todos o
direito universal aos cuidados com a saúde.
Ideia tão boa, e eficiente, diga-se
de passagem, que os próprios planos privados de
saúde com sua cara elitista, usa brechas da lei para mandar seus
“usuários vips” para serem “tratados”, utilizando recursos
de ponta e de alta tecnologia do velho SUS, o que, é claro,
deve se coibido, já que usa e abusa – cobra por isso – de um
serviço publico e gratuito.
Embora o autor do texto abaixo comece
o seu artigo com uma afirmação: “Há muitas razões para
perder a esperança neste Brasil de 2016.” Eu
não concordo!
Temos
sim, e muitos motivos para “arregaçar as mangas” e partir para
luta, para participar, cada um do seu jeito, a seu modo, deste
momento histórico onde certa elite mal acostumada tenta “chutar o
balde” e sonha em provocar um retrocesso, que jogue por terra
grandes conquistas da população na história recente deste país,
inclusive a excelência deste programa maravilhoso, o SUS.
A hora é de luta e participação para garantir conquistas que
beneficia, pela primeira vez na história, diga-se de passagem, toda
população brasileira, integrando grande contingente de brasileiros
ao cotidiano do direito e da vida decente ao país.
"Brasília? Itaipu? Não. O SUS é a maior obra da história do Brasil
Há muitas razões para perder a esperança neste Brasil de 2016 –
e há ao menos uma para se encher de coragem. Para continuar
deprimido, você já sabe o caminho. Para recobrar o ânimo,
lembre-se que esta terra meio atrapalhada foi pioneira, entre países
grandes, a transformar saúde em direito fundamental. Vamos lá.
Um dia, no começo dos anos 1990, minha mãe atendeu o telefone e
soube que o irmão mais velho estava com o coração por um fio. O
rosto da minha mãe congelou, e ficou assim por um tempo, numa
expressão dura de impotência e tristeza. Meu tio não tinha
convênio médico.
Era uma situação tão difícil quanto previsível. No Jaraguá,
bairro da periferia de São Paulo onde meu tio vivia, as pessoas
morriam cedo. E não era só lá. Em Pirituba, onde meus avós e
algumas tias moravam, a situação era a mesma.
Lembro bem das vizinhas que foram viúvas quase a vida inteira e
das pessoas que tinham dois nomes – o segundo era uma homenagem a
um irmão morto logo depois do parto. A morte estava por perto. Era
só esperar um pouquinho que ela chegaria depois de uma gripe ou de
uma festa de domingo.
Essas pessoas – pedreiros, eletricistas, donos de bar,
sapateiros – não tinham renda o suficiente para bancar essa
despesa nem um pedaço do Estado para pedir ajuda. Plano de saúde
era coisa de funcionário público ou de região com muita fábrica,
região desenvolvida, coisa do admirado ABC Paulista, onde vivia
outra parte da família. Aquele pedaço industrial de São Paulo, na
minha cabeça de criança, era intocado por velórios.
Para sorte da família do eixo Jaraguá/Pirituba, o Brasil criou o
SUS (Sistema Único de Saúde) em 1988. Como lembra o doutor Dráuzio
Varella, “nós nos tornamos o único país com mais de 100 milhões
de habitantes que ousou oferecer saúde para todos”.
Tivemos essa coragem nos anos 1980. Naqueles anos difíceis, uma
série de heróis anônimos, de diferentes correntes políticas,
criou um consenso. Não é uma questão de políticas do MDB ou da
Arena, do PT, PSDB, PMDB ou DEM. O Brasil chegou à conclusão de que
saúde era direito de todo mundo e de que a conta deveria ser rateada
entre a população – tanto que colocou isso na Constituição.
Futuros engenheiros
Foi uma das obras mais grandiosas da nossa história – maior do
que Brasília, maior do que Itaipu. Essas obras são importantes,
claro. Mas a existência do SUS permite que futuros engenheiros
sobrevivam ao primeiro ano de vida.
Entre 1990 e 2015, o Brasil derrubou drasticamente a taxa de
crianças que morrem com poucos anos de vida. Os médicos da família
chegam a milhões de pessoas. A vacinação, o transplante de órgãos
e o combate à Aids se transformaram em referências internacionais.
Recentemente, foi uma médica do SUS quem descobriu a relação entre
zika vírus e microcefalia.
O SUS também salvou algumas vidas familiares. Meu tio com o
coração frágil, graças ao sistema público, está vivo e bem até
hoje – apesar da sua situação ainda ser preocupante.
O SUS é inspirado nos sistemas de saúde dos países da Europa
Ocidental, como o NHS (National Health System) inglês. Admirado e
respeitado, foi até homenageado na abertura da Olimpíada de 2012,
em Londres.
Para criar um sistema assim, é preciso que o país, em algum
momento da sua história, tenha chegado a uma conclusão: saúde não
é apenas responsabilidade individual. É direito das pessoas e,
portanto, obrigação do Estado.
Parece um jogo de conceitos, mas não é. Nos EUA, sempre foi
muito difícil criar um sistema público de saúde. Para muita gente,
é uma interferência enorme do governo na vida das pessoas e esse
problema é mais bem resolvido por operadoras privadas de saúde, com
incentivos para competir e oferecer melhores serviços.
Isso tem consequências. As pessoas têm acesso a muitos
medicamentos e tratamentos modernos nos EUA. Ao mesmo tempo, têm
contas gigantescas para pagar e muitas famílias quebram – ou não
tem acesso a serviços básicos. Na Europa ocidental, o tratamento é
público e gratuito. Pode ser mais demorado, nem sempre é de ponta,
mas ninguém precisa se preocupar com contas milionárias.
Claro, há uma enorme zona cinza entre esses dois pontos, e é
muito raro encontrar um país que seja apenas público ou apenas
privado. Há variações sobre o tamanho do Estado tanto em
investimento quanto em regulação – afinal, o que você vai fazer
caso seu plano não te atenda? Não importa o modelo. Ele sempre pede
escolhas, e elas não são fáceis. Não tem exatamente certo ou
errado. Tem o que funciona e o que não funciona para cada país, de
acordo com as escolhas que cada um faz em determinado momento da sua
história.
Deficiências
O SUS é um avanço gigantesco, mas é impossível ignorar os
casos de corrupção, o descaso com hospitais e postos de saúde,
além da demora de meses para agendar consultas em muitos Estados e
municípios. Na média, ainda temos menos médicos a disposição das
pessoas do que a média dos países mais desenvolvidos do mundo – e
ainda temos de ver Estados, como o Rio de Janeiro, em situação de
calamidade.
Até a médica que descobriu o elo entre zika e microcefalia, na
Paraíba, vive longe do paraíso – ela precisa de muito mais
dinheiro para tocar suas pesquisas.
O complexo sistema de financiamento do SUS, dividido entre União,
Estados e municípios, não ajuda. Muitos governadores e prefeitos
não investem o mínimo necessário para o sistema funcionar. Na
prática, os gastos de todos os governos com saúde não chegam a 4%
do PIB. É pouco.
Se somarmos todos os gastos com saúde no Brasil, o setor privado
é responsável por 60% dele. Os outros 40% são de dinheiro público.
Porém, o setor privado atende apenas 25% das pessoas. A maior parte
dos brasileiros depende de um dinheiro escasso, picotado e, muitas
vezes, mal administrado.
Para piorar, o setor privado está longe da sua melhor forma.
Mesmo os brasileiros que podem pagar não estão seguros. As
reclamações são gigantescas. Dados recentes revelam que cerca de
100 mil pessoas fizeram queixas formais dos serviços dos convênios
em um ano.
Além disso, em muitos casos o setor privado repassa a conta ao
governo. Os planos usam brechas jurídicas para mandar seus
consumidores ao SUS, economizando alguns milhões em repasses a
médicos e hospitais. Além da canibalização de recursos escassos,
há uma malandragem desagradável.
A conta do SUS é difícil. Afinal, dinheiro público não é
dinheiro gratuito – ele vem dos nossos impostos e das nossas
escolhas. Saúde é uma questão de vida e morte – e mesmo o melhor
plano não garante um tratamento caríssimo de câncer. Não há um
consenso de que só Estado ou só o mercado possam resolver o
problema. Saúde é um desafio gigantesco, concreto e imediato. Mas é
uma questão que vale a pena encarar.
Nesse Brasil polarizado, muitas vezes em torno de questões
vazias, é sempre bom lembrar dos tios que foram salvos pelo SUS e de
quantos mais poderiam ter sido salvos, se o sistema fosse melhor.
Temos de ter orgulho das coisas que dão certo e espírito crítico
para resolver, sem histeria, os nossos problemas. Um SUS poderoso não
é bom apenas para quem usa o sistema público – ele também obriga
o setor privado a puxar sua régua lá pra cima.
Leandro Beguoci, via BBCBrasil
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