Já vimos falando aqui há algum tempo sobre o grande
risco, talvez em seu momento mais grave, que os EUA representam para o mundo
hoje em meio a sua decadência, que já não dá mais para disfarçar ou esconder. O
risco é que em meio a tudo isso sobram-lhes os dentes – e que dentes! – potencializados
ao infinito em meio ao desespero institucional com a perda gradual e
irreversível de relevância, aumentando, e muito, o risco de morder. Mais do que
o usual, diga-se de passagem.
Immanuel Wallerstein é um dos intelectuais de maior projeção internacional na atualidade. Seus estudos e análises abrangem temas sociológicos, históricos, políticos, econômicos e das relações internacionais. É professor na Universidade de Yale e autor de dezenas de livros. Mantém um site onde publica seus textos.
– ON 30/12/2014 -
Em 27 de novembro, o New York Times publicou
em manchete o artigo “Políticas conflitantes na Síria e no Estado islâmico
corroem a presença dos EUA no Oriente Médio”. Mas isso não é novidade. A
presença dos EUA no Oriente Médio (e em outros lugares) vem se deteriorando há
quase 50 anos. A realidade é muito mais ampla do que a disputa imediata entre
as forças anti-Assad na Síria e os seus apoiadores em outros lugares, por um
lado, e o regime Obama nos Estados Unidos, por outro.
O fato é que os Estados Unidos tornaram-se, na
expressão derivada de uma antiga prática náutica, um “canhão frouxo”, isto é,
um poder cujas ações são imprevisíveis, incontroláveis e perigosas para si e
para os outros. O resultado é que o país não é confiável para quase ninguém,
ainda que vários países e grupos políticos lhe peçam ajuda para coisas
específicas, a curto prazo.
Como é que o antes inquestionável poder hegemônico
do sistema-mundo, e ainda de longe o mais forte poder militar, acabou nesse
estado deprimente? Ele é insultado, ou pelo menos severamente censurado não só
pela esquerda, mas também pela direita mundial, e até mesmo pelas poucas forças
de centro que ainda restam neste mundo crescentemente polarizado. O declínio
dos Estados Unidos não é devido a seus equívocos políticos, mas estrutural – ou
seja, não pode realmente ser revertido.
Talvez seja útil rastrear os sucessivos momentos
dessa erosão de poderio efetivo. Os Estados Unidos encontravam-se no auge de
seu poder entre 1945-1970, período em que apareciam no cenário mundial 95% do
tempo, em 95% dos assuntos – o que é minha definição de verdadeira hegemonia.
Essa posição hegemônica era sustentada por um arranjo com União Soviética, a
qual mantinha com os Estados Unidos um acordo tácito de divisão de zonas de
influência — que não deveria ser ameaçado por nenhum confronto entre os dois.
Isso era denominado guerra fria, com ênfase na palavra “fria”, e, pela posse de
armas nucleares, uma garantia de “destruição mútua assegurada”.
O objetivo da guerra fria não era subjugar o
presumido inimigo ideológico, mas manter sob controle os próprios países
satélites de cada um dos lados. Este arranjo confortável foi inicialmente
ameaçado pela resistência de organizações do então chamado “Terceiro Mundo” a
sofrer as consequências negativas dessa ordem. O Partido Comunista Chinês
desafiou a imposição de Stalin para comprometer-se com o Kuomintang e, ao invés
disso, marchou sobre Xangai e proclamou a República Popular. O Viet Minh (“Liga
pela Independência do Vietnã”) desafiou os acordos de Genebra e insistiu em
marchar sobre Saigon para unir o país sob sua direção. A Frente de Liberação
Nacional da Argélia desafiou a determinação do Partido Comunista Francês para
que desse prioridade à luta de classes na França e lançou a guerra pela
independência. E as guerrilhas cubanas que depuseram a ditadura de Batista
forçaram a União Soviética a ajudá-las a se defender da invasão dos EUA ao
tomarem, do grupo que tinha feito conchavo com Batista, o rótulo de Partido
Comunista.
A derrota dos Estados Unidos no Vietnã resultou
tanto da enorme drenagem de recursos do Tesouro norte-americano pelo conflito
como do crescimento da oposição interna à guerra, pelos jovens recrutas de
classe média e suas famílias – o que legou uma restrição permanente às futuras
ações militares dos EUA, na chamada síndrome do Vietnã.
A revolução mundial de 1968 foi não apenas contra a
hegemonia dos EUA, mas também contra o conluio soviético com os Estados Unidos.
Coincidiu também com rejeição dos velhos partidos de esquerda (Partidos
Comunistas, Partidos Social-democráticos, Movimentos de Libertação Nacional),
com base em que, a despeito de chegar ao poder, eles não mudaram o mundo como
prometeram e tornaram-se parte do problema, não da solução.
Nos governos dos presidentes Richard Nixon a Bill
Clinton (inclusive Ronald Reagan), os Estados Unidos procuraram desacelerar seu
declínio por meio de uma política tríplice. Convidaram os aliados mais próximos
a mudar seu status de satélite para parceiro — com a condição de não se
afastarem muito das políticas norte-americanas. Mudaram o foco na economia
mundial — do desenvolvimentismo para uma demanda a que o Sul Global produzisse
para exportar, sob as injunções neoliberais do Consenso de Washington. E
procuraram frear a criação de novas potências nucleares para além dos cinco
membros permanentes do Conselho de Segurança, impondo a todos os outros países
o fim de seus projetos de armamentos nucleares – um tratado não assinado e
ignorado por Israel, Índia, Paquistão e África do Sul.
Os esforços norte-americanos foram parcialmente bem
sucedidos. Eles tornaram mais lento, mas não reverteram o declínio dos EUA.
Quando, no final dos anos 1980, teve início o colapso da União Soviética, os
Estados Unidos ficaram na verdade decepcionados. A guerra fria não era para ser
vencida, mas para manter-se indefinidamente. A consequência mais imediata do
colapso da União Soviética foi a invasão do Kuwait pelo Iraque de Saddam
Hussein. A União Soviética não estava mais lá para conter o Iraque, no
interesse dos arranjos entre as duas potências.
E embora os Estados Unidos tenham vencido a Guerra
do Golfo, mostraram logo sua fraqueza pelo fato de não poderem financiar seu
próprio papel, dependendo, para cobrir 90% de seus custos bélicos, de quatro
outros países – Kuwait, Arábia Saudita, Alemanha e Japão. A decisão do
presidente George H.W. Bush de não marchar sobre Bagdá, mas contentar-se com a
restauração da soberania do Kuwait, foi sem dúvida um julgamento sábio, mas
muitos, nos Estados Unidos, consideraram-no como uma humilhação, pois
mantinha Saddam Hussein no poder.
O próximo ponto de virada foi a
ascensão ao poder do presidente George W. Bush e do círculo de
intervencionistas neoconservadores de que se cercou. Esse grupo usou o ataque
de 11 de Setembro pela al-Qaeda como pretexto para justificar a invasão do
Iraque em 2003 e derrubar Saddam Hussein. Isso foi visto pelos
intervencionistas como maneira de restaurar uma pálida hegemonia dos EUA no
sistema-mundo. Muito ao contrário, foi um tiro no pé. De duas maneiras: pela
primeira vez os Estados Unidos perderam um voto no Conselho de Segurança da
ONU; e a resistência iraquiana à presença dos EUA foi maior e mais persistente
do que se imaginava. Em síntese, a invasão precipitou o declínio, o que nos
traz aos esforços do governo Obama para lidar com isso.
A razão pela qual nem o presidente Obama, nem
qualquer futuro presidente dos EUA será capaz de reverter esse processo é
porque os Estados Unidos não querem aceitar essa nova realidade e ajustar-se a
ela. O país ainda está tentando restaurar seu papel hegemônico. Perseguir essa
tarefa impossível leva-o a desencadear as chamadas “políticas conflitivas”
no Oriente Médio e em outros lugares. Como um canhão frouxo, Washington muda
constantemente de posição, procurando estabilizar o navio geopolítico mundial.
A opinião pública dos EUA está dividia entre as glórias de ser “líder” e os
custos de tentar ser líder. A opinião pública ziguizagueia constantemente.
Ao observarem este espetáculo, os países e movimentos
deixam de depositar confiança nas políticas norte-americanas. Cada qual
persegue suas próprias prioridades. O problema é que canhões
frouxos resultam em destruição, tanto para os que disparam como para o
resto do mundo. E isso intensifica o papel que o medo desempenha nas ações de
todos os outros, aumentando os perigos para a sobrevivência global.
Tradução: Inês Castilho
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