É uma entrevista
bastante oportuna diante do momento, não só pelo qual passamos como brasileiros,
mas, também, pela mesma “onda retrograda” que acomete o ‘mundo’.
Onda esta quem tem as cartas
muito bem marcadas e pelos mesmos agentes, que tentam promover uma ‘retroagia’
em aspectos fundamentais à vida em dimensões bem mais amplas, submetendo-a ao
jugo de “meia dúzia” dos que se pretendem donos, herdeiros exclusivos da experiência
humana e que podem usar, e manipular, ao seu bel prazer.
Um país não passa de um
campo de experimentos essenciais á manutenção do ‘sistema’ e um golpezinho a mais
ou a menos está no script.
"A utopia foi privatizada', afirmou Zygmunt Bauman em entrevista inédita
Filósofo polonês morto em 2017 falou sobre
política, tecnologia e como enxergava o futuro
Quando eu e o diretor de fotografia
Jacob Solitrenick tocamos a campainha da casa de Zygmunt Bauman, já estávamos
com todo o equipamento pronto para iniciar a entrevista. Ao entrarmos, porém, o
sociólogo não deixou que começássemos a trabalhar: fez questão de nos servir um
lanche com frutas, papear um pouco, como quem reduz a velocidade a que estamos
acostumados no cotidiano, abre uma brecha de humanidade na produtividade. Não
que ele estivesse sem o que fazer: precisava arrumar as malas para uma conferência
fora do país, tinha que deixar uma lista de e-mails respondida, entre outros
assuntos.
Mas não pôde deixar de abrir uma pausa na urgência, um desses gestos
pequenos e gigantes ao mesmo tempo, lição de adequação entre o pensamento e o
cotidiano: não basta criticar o tempo que vivemos, é preciso vivê-lo de outra
maneira.
Bauman nasceu na Polônia em 1925, mas
residia na Inglaterra, onde foi professor titular da Universidade de Leeds. No
decorrer da sua trajetória, publicou dezenas de livros, traduzidos para
diversas línguas. Aliava uma vasta observação do mundo contemporâneo com uma
escrita acessível ao leitor não-especializado: seu conceito de modernidade
líquida, por exemplo, suscitou debates nas universidades, mas também na
imprensa, nas artes, assim por diante.
Fui entrevistar o sociólogo em junho
de 2012 por conta de uma série de televisão que escrevi e dirigi, Incertezas Críticas, produzida pela
Grifa Filmes. Meu objetivo era inserir determinados aspectos do nosso presente
num horizonte mais amplo: isto é, apresentar algumas possibilidades de análise
e interpretação de temas como a crise econômica, a internet, a arte
contemporânea, entre outros, de modo a sugerir quadros conceituais menos
fixados na urgência das últimas notícias. Nesse sentido, a conversa com Bauman
era promissora: ao longo da sua obra, existe uma variedade de assuntos notável,
que caminha lado a lado com uma ambição interpretativa alargada.
Ao saber da morte de Bauman no último
dia 9, decidi tornar público parte do material da entrevista, ainda inédita.
Como se verá, muito do que foi dito naquela tarde ajuda a explicar o mundo que
vivemos hoje.
Como você relaciona crise econômica
e modernidade líquida?
A incerteza é a única certeza que
temos. Não sabemos mais como planejar a longo prazo e, quando planejamos, não
temos certeza se o plano vai se concluir. Isso se aplica ao nível individual e
ao nível social. A crise econômica é só um dos exemplos dessa instabilidade.
Como isso se dá?
Poder é a capacidade de realizar as
coisas. Política é a capacidade de decidir quais coisas serão realizadas. As
duas coisas, poder e política, até 50 ou 60 anos atrás, andavam juntas, dentro
do quadro dos Estados-nações. As pessoas podiam estar à direita, esquerda ou no
centro do espectro político, mas todas concordavam em um ponto: o que fosse
decidido, as instituições políticas do Estado tinham o poder e os instrumentos
para realizar. Então, a questão toda era quem estava sentado no palácio
presidencial ou no comando do governo. Uma vez lá dentro, poderiam fazer
política de um jeito ou de outro. Tinham os meios, os instrumentos e a
capacidade para fazer isso. Não funciona mais assim.
Como funciona?
Na Europa, temos governos que
trabalham com algo que, na área de sociologia, chamamos de double bind. Trata-se de uma pressão dupla em direções extremamente
opostas. Por um lado, eles estão expostos ao eleitorado, porque são reeleitos
ou tirados do poder a cada 3 ou 4 anos. Portanto, precisam escutar o que o povo
quer. Por outro lado, os governos sofrem a pressão extraterritorial de
finanças, capitais, bancos internacionais, corporações etc. Estes não dependem
do eleitorado, não foram eleitos e não ligam nem um pouco para qual será a
reação da população. Querem que o governo deixe de escutar o povo e faça as vontades
dos acionistas, pois, para eles, a economia equivale aos interesses dos
acionistas, isto é, destes que podem ganhar bilhões do nada, ou destruir
bilhões, em um dia. São pressões opostas. O resultado disso é que o governo tem
opções limitadas.
As crises tendem a se multiplicar?
Eu não acho que essa situação de
desordem econômica, pois é difícil chamar isso de ordem, poderia sobreviver sem
uma crise constante. Deve haver algum lugar onde os capitais possam se
reabastecer ou rejuvenescer, sugando os espólios de outros locais. Então, o que
é característico do sistema mundial hoje, em tempos de modernidade líquida, é a
constante mudança ou flutuação de poder econômico de um lugar para outro. A
situação é essa: por um lado, há poderes que estão livres de qualquer controle
político; por outro lado, há políticos que sofrem com a falta de poder. Temos
poder sem política e política sem poder.
Como isso afeta cada um de nós?
Até recentemente, os Estados tinham a
obrigação de prover as necessidades básicas da vida. Mas, por causa do déficit
de poder dos governos nacionais, eles não conseguem mais prover. Portanto, os
governos precisam deixar de lado as funções que tinham como obrigações. Eles
têm duas formas de deixar de lado essas funções. Uma delas é privatizar. A
outra forma é rebaixá-las a um nível que, após Anthony Giddens, chamo de
política da vida real. Na política da vida real, eu, você e todas as pessoas,
somos ao mesmo tempo parlamento, governo e judiciário. As pessoas têm que
decidir o que fazer, executar e julgar. Assim, diversas funções que eram antes
realizadas por uma comunidade, agora estão nos ombros dos indivíduos.
Quais as consequências dessa
política da vida real?
Por um lado, é um grande avanço de
liberdade individual. Em princípio, você pode ser o dono da sua própria vida. É
o que chamo de indivíduos de jure: nós somos indivíduos por decreto. Assim,
goste ou não, você é culpado por suas derrotas. Se você fracassa, não pode
culpar a ninguém. O que, é claro, afeta sua auto-estima. Se os seus pais sofressem
de insônia era, sobretudo, porque tinham medo de não estar suficientemente bem
conformados aos padrões. Mas, caso você sofra de insônia, não é por medo de
desviar da norma. Pelo contrário, você pode agir como quiser. Você pode ter
medo, talvez, de ser incapaz de realizar algo. Sentir que não tem os recursos,
o talento, a capacidade ou a energia suficientes para ser quem gostaria de ser.
Supostamente, você é livre para escolher sua identidade, mas na prática você
não consegue realizar isso. Portanto, você é um indivíduo de jure, mas não é um
indivíduo de fato. Essa situação traz sentimentos muito desagradáveis, que são
muito comuns no mundo hoje. Um deles é o sentimento de ignorância constante, de
não saber o que vai acontecer. Outro sentimento é o de impotência, isto é,
mesmo que eu saiba exatamente qual o perigo, não posso fazer nada para impedir.
Não tenho o poder para isso. A combinação desses sentimentos, ignorância e
impotência, resulta no de humilhação, que é um golpe pesado na autoconfiança e na
auto-estima. De acordo com as estatísticas, a depressão é a doença mais comum
do momento. Muita gente fica deprimida em algum momento. A depressão é o
produto dessa sensação de não ter controle, de estar abandonado. Às vezes,
chamamos isso de exclusão. Nós somos excluídos de onde a ação acontece, de onde
a vida real é vivida. Não conseguimos chegar lá.
Nessa perspectiva, dá para pensar
em utopia?
Viver nessas circunstâncias exige que
as pessoas tenham nervos muito fortes. Que tenham determinação e também que
pensem em maneiras de transformar o mundo em que vivem. É muito difícil de
propor isso e mais ainda de conseguir. As utopias, há 50 ou 60 anos, eram
utopias sobre uma sociedade perfeita, na qual cada pessoa teria um lar com
segurança e todos estariam mais ou menos satisfeitos com a vida. Ter uma boa
vida significava viver dentro de uma boa sociedade, por causa dela e graças a
ela. Hoje, essa utopia não existe mais. Utopia, como muitas outras coisas na
vida, foi privatizada. A utopia privatizada não é sobre uma sociedade melhor,
mas sobre indivíduos melhores, cada um em suas situações individuais, dentro de
uma sociedade muito ruim. Sobre a sociedade, dizem que não dá para mudar. Mas o
que as pessoas podem fazer é cuidar de si mesmas, de seus entes queridos, sua
família, cônjuge, o que seja. Encontrar um lugar confortável em um mundo
essencialmente desconfortável.
Você pode dar um exemplo de utopia
privatizada?
O Facebook. Nele, você pode ter um
mundo imaginário, on line, que não
aparece na realidade offline. Você
pode ser quem você quiser online. Pode ter várias identidades diferentes, pode
fingir ser algo que não é, pode realizar todos os seus sonhos. É uma maneira de
fugir das duras exigências e asperezas do mundo offline. Uma outra reação é buscar algum tipo de mudança na
sociedade como um todo. Por exemplo, os movimentos Occupy.
Como você vê o futuro a partir
dessas alternativas?
Eu não sou pessimista nesse sentido.
Porque toda árvore de carvalho de cem anos começa com uma muda apenas. E,
então, se torna um carvalho majestoso em cem anos. Todas as maiorias na
história começaram como minorias. Se não fosse assim, ainda estaríamos no
período paleolítico: se ninguém quisesse sair da caverna, ainda estaríamos lá.
Aqueles que decidiram sair eram minoria. Então, cedo ou tarde, o ser humano vai
encontrar soluções, mudar os hábitos, mudar a si próprio e começar a viver de
outra maneira. Tenho quase certeza disso, mas o problema que me preocupa é
quanto tempo isso levará para acontecer.
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