Mexendo em meus alfarrábios encontrei este texto e
relendo achei bem oportuno, daí veio a ideia de partilha com você
Parece grande, não? E é grande! Mas tem coisa que
vale à pena o sacrifício e este é um texto destes, onde autora traz à tona
situações do dia a dia que fazem muito bem, ou frequentam o cotidiano de todo mundo.
E olha que o texto nem é tão novo assim [não tenho
data de publicação] e estaria até mesmo meio desatualizado dado o quase salto tecnológico
e comportamental de hoje, mas “tem coisa” que não fica defasada e é grande ponto
para reflexão.
Dê uma passada de olhos rápida...
Confira!
Você não é perfeito
Por Elisa Correa, na Revista Vida Simples/Abril (hoje
encerrada)
Por
que desejamos (e raramente conseguimos) ter um corpo irretocável, um casamento
de novela e um emprego de sonhos? A resposta pode estar na forma como nos
relacionamos com o mundo à nossa volta
No mês em que completaria 100
anos, Simone de Beauvoir ganhou de presente uma polêmica. Justo ela, que
escandalizou o mundo em 1949 ao lançar O Segundo Sexo, livro que se tornou
um dos pilares do movimento feminista. Para comemorar o centenário da
escritora, a revista semanal francesa Le Nouvel Observateur escolheu
para a capa uma foto onde a companheira de Jean-Paul Sartre aparece nua, de
costas, arrumando os cabelos no espelho de um banheiro. Além das críticas
recebidas pela exposição de um ícone feminista, a publicação da imagem gerou
uma grande discussão por causa dos retoques feitos na foto, tirada em Chicago,
em 1952. Para ficar mais apresentável e mais perto dos atuais padrões de
beleza, Simone de Beauvoir foi submetida a uma sessão de Photoshop.
Se até a História precisa se adequar aos padrões
vigentes, o que dizer de nós? Em um mundo onde a competição toma conta das
relações, os modelos são sempre superlativos: precisamos ser os mais rápidos,
desejamos ser os mais belos, lutamos para ser os mais fortes. Comparamo-nos o
tempo inteiro, e parece que a perfeição está sempre no outro: no corpo da
apresentadora de TV, na grande demonstração de afeto da namorada do vizinho, no
empregão do ex-colega da faculdade.
Os nossos são tempos de melhoramento contínuo, de
infinitos retoques, de aperfeiçoamento compulsivo. Tempos onde as imperfeições
não têm vez. São vistas como falhas que nos impedem de alcançar a excelência.
Mas será que elas não podem ser vistas de outro jeito? Como diferenças particulares,
como expressão da personalidade, como aquilo que nos faz ser o que somos?
Demasiado humanos
Enquanto lia esses poucos parágrafos, talvez
inconscientemente você tenha começado a listar seus defeitos. Os centímetros a
menos, a barriga que insiste em saltar da calça, a preguiça que impede aquelas
aulas de francês à noite, sua desorganização atávica. Parabéns, você lembrou
que é humano. E isso já é um bom começo.
Porque não é fácil sobreviver à avalanche de
histórias de transformação pessoal e receitas de superação que desabam todos os
dias sobre nós. Tem sempre alguém, do alto do próprio sucesso, dizendo que
querer é poder. Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, esta é uma das
características da pós-modernidade: saem os líderes e entram em cena os consultores,
pessoas que dão conselhos para o que a gente quer, no momento em que a gente
precisa. Eles alimentam nosso desejo de ter exemplos de vida, de saber como os
outros se comportam quando lidam com problemas iguais aos nossos. E impulsionam
a indústria do automelhoramento: programas de televisão apresentam gente como a
gente contando como é possível vencer todas as dificuldades; livros e DVDs
ensinam passo a passo como construir o corpo dos sonhos e conquistar o cargo de
presidente de uma grande empresa.
Mas é preciso ter cuidado para não criar metas
inatingíveis ao querer tanto chegar lá. O psicólogo e terapeuta de família
Dalmo Silveira de Souza avisa: Se você está buscando evoluir, melhorar como ser
humano, vá em frente. Agora, se através da comparação e da competição você está
buscando ter um corpo irretocável e um casamento sem problemas, um emprego de
cinema, é melhor uma pausa no caminho. Porque seu lá pode se transformar em
lugar nenhum, exatamente o significado da palavra utopia, que vem do grego ou
(não) e topos (lugar).
A comparação
Mas como nasce a percepção dos nossos defeitos e
limitações e o desejo de querer ser e ter mais? Ao olharmos para os outros. O
escritor e educador Rubem Alves vê na comparação um exercício dos olhos:
Vejo-me; estou feliz. Vejo o outro. Vejo-me nos olhos do outro. Ele tem mais do
que eu. Ele é mais do que eu. Vendo-me nos olhos dos outros eu me sinto
humilhado. Tenho menos. Sou menos. Ele mesmo só descobriu que era pobre quando
deixou o interior de Minas para morar no Rio e foi parar num colégio de
cariocas ricos. Então começou a se sentir diferente, falava com sotaque
caipira, não pertencia ao mundo elegante dos colegas, sentiu vergonha da sua
pobreza.
Porque, até então, Rubem não sabia. Morava com a
família numa casa velha de pau-a-pique, numa fazenda emprestada. Eu sou muito
ligado a esse passado, foi um período de grande pobreza, mas eu não sabia que
era pobre. O sentimento de infelicidade nasce da comparação. Foi um momento de
grande felicidade, um período sem dor. Só dor de dente, dor de espinho no pé.
Não há como escapar da comparação. Só conseguimos
avaliar o que temos e o que somos comparando nossa situação com a de um grupo
de referência. É o sentimento de que podemos ser um pouco diferentes do que
somos um sentimento transmitido pelas realizações superiores daqueles que
consideramos nossos iguais que gera desejo e ressentimento, diz o filósofo
Alain de Botton no livro Desejo de Status. Então o que fazer com esse
sentimento? O que fazer se nossa vida parece tão ordinária quando comparada à
dos outros?
A primeira coisa é cuidar para que a competição
não tome conta das relações, sejam elas afetivas, familiares ou profissionais.
Se isso acontecer e normalmente acontece, que tal transformar a competição em
cooperação? Como? Percebendo que não estamos nas relações apenas para dar ou
receber, e sim para cooperar, construir um bem comum. E, depois, tentar ver a
vida dos outros como ela é. E não como parece ser. Já está mais que na hora de
deixar de acreditar que existe um mundo cor-de-rosa. Não existe. Nem para você
nem para a garota sorridente da capa de revista. Os conflitos, as idas e
vindas, os erros e todas as outras mancadas do caminho fazem parte do processo
de vida. Ver a perfeição apenas naquilo que não se tem ou no que os outros têm
é um tipo de comportamento que só gera insatisfação.
A sombra do consumo
Talvez ajude saber que a insegurança e as
imperfeições atormentam muitas pessoas que admiramos. Lembro-me de uma
entrevista que fiz com o jornalista e escritor Fernando Morais em que ele disse
nunca ler seus livros depois de colocar o ponto final e entregar para a
gráfica: O ideal seria não ter nunca que entregar o livro para o editor. Todo
dia acordar e pentear, pentear, pentear... Já pensou? Por pouco não deixamos de
ler Olga e Chatô.
Mas os artistas sabem que existe um limite, que a
busca da perfeição não pode impedir a criação. Chega uma hora em que é preciso
tomar coragem e colocar o bonde na rua. É o que faz a cantora Fernanda Takai,
perfeccionista convicta que diz estar aprendendo a viver com as imperfeições.
Em tudo que me envolvo quero fazer bem, pois tem minha cara, minha assinatura.
Mas, no meu caso, essa auto-exigência é positiva, porque acho que tenho
evoluído como artista, diz.
E também é bom não subestimar o peso dos valores
herdados. Desde pequenos fomos ensinados pela publicidade da TV, das revistas e
dos outdoors a ser consumidores e, conseqüentemente, a buscar satisfação total.
O problema é que a realização dos desejos é sempre projetada no futuro, no que
está um pouco mais além. E aí, quando nossos desejos são atendidos, perdem
automaticamente o fascínio e a capacidade de nos satisfazer. E são substituídos
por outros.
Como bons consumidores, também medimos nossos
relacionamentos pela satisfação. O sociólogo inglês Anthony Giddens deu até
nome para esse novo tipo de relação amor confluente que substituiu a velha ideia
romântica do amor exclusivo até que a morte nos separe. As relações de amor
confluente duram apenas até quando e nem um dia a mais dura a satisfação de
cada um dos envolvidos.
Enquanto Giddens vê essa mudança das relações como
libertadora, Zygmunt Bauman acredita que, hoje, os relacionamentos são
considerados como coisas a serem consumidas e não produzidas e, desse jeito,
ficam submetidos aos mesmos critérios de avaliação de outros objetos de consumo.
No livro The Individualized Society (A sociedade individualizada, sem
edição brasileira), Bauman adverte que se o parceiro é visto pela ótica do
consumo, não é mais necessário para o casal fazer funcionar o relacionamento,
garantir que ele sobreviva aos altos e baixos, fazer sacrifícios para que a
união dure. Basta procurar um relacionamento novo e melhor no mercado quando o
velho não der mais a satisfação esperada e o prazer prometido.
Imagem e verdade
Roberto e Mariana Vieira, do nos de uma pequena
fábrica de confecções em Santa Catarina, sempre acharam que num casamento
perfeito não cabiam conflitos nem desentendimentos e, por isso, durante 15 anos
viveram como um casal modelo. Os amigos acreditavam que eram almas gêmeas e
sonhavam com um relacionamento igual. Dois anos atrás, o casamento entrou em
crise. Roberto e Mariana perceberam que muitas dificuldades não foram
enfrentadas para preservar a fachada de casal sem problemas que eles mesmos
ajudaram a construir. E um casamento pode se sustentar sem o imperativo do
relacionamento perfeito? Descobrimos que podíamos e deveríamos brigar, expor
nossos sentimentos e opiniões, como todas as outras pessoas. E ainda assim
continuar juntos, diz Mariana.
Por isso, antes de sair porta afora mais uma vez,
talvez seja bom refletir: se você está sempre à procura da pessoa certa, se
termina um relacionamento atrás do outro e ainda sonha com a mais perfeita das
criaturas, é melhor se perguntar o que anda acontecendo. Com você. Com seu
jeito de estar nas relações. O psicólogo Dalmo Silveira de Souza lembra que,
antes de tudo, é preciso desenvolver o autoconhecimento: Não criar falsas
expectativas sobre o que o outro pode dar e sim se responsabilizar por seu
jeito de ser. Quando desenvolvo consciência do meu padrão de funcionamento,
posso deixar de procurar ou depositar no outro o que é meu.
Perfeição de massa
Ver o mundo através das lentes do consumo nos faz
exigir sempre o melhor, não importa se de um produto, de um relacionamento, de
um emprego ou das pessoas que amamos. E, como o feitiço também vira contra o
feiticeiro, de nós não exigimos menos que a excelência. A coisa é tão séria que
virou fobia. Quem sofre de atelofobia tem medo da imperfeição. E também tem
ansiedade crônica. Porque é difícil viver em uma sociedade onde o sofrimento, a
tristeza, os defeitos e as fraquezas não são mais tolerados.
A indústria oferece soluções para qualquer tipo de
problema e para todos os tipos de bolso: receitas para o sucesso nas
prateleiras das livrarias; pílulas da felicidade na farmácia da esquina; o
corpo dos sonhos em troca de cheques a perder de vista. Bem-vindos. Esses são
os tempos da perfeição de massa, onde os defeitos são vistos como erros da
natureza que podem ser corrigidos, deletados, deixados pa ra trás. Dentes
desalinhados e pés chatos, olhar estrábico e orelhas de abano, escoliose e
miopia, verrugas salientes e septos desviados são coisas do passado.
O corpo deixa de ser determinado e passa a ser
inventado. Um corpo fabricado pelas nossas escolhas. Livre do sofrimento e do
tempo. É o que sustenta o escritor francês Hervé Juvin no livro LAvènement
du Corps (O triunfo do corpo, sem edição brasileira). Impotência,
esterilidade, envelhecimento, desânimo, menopausa: tudo pode ser reparado.
Músculos, cabelos, lábios e seios: tudo pode ser melhorado. O escritor vai
além. Defende que, pela primeira vez, estamos diante de uma humanidade realmente
dividida. Pelo corpo. Dentes quebrados ou cariados, corpos envelhecidos, mancos
ou mutilados, rugas e cicatrizes separam os mundos mais que o dinheiro,
escreve.
Mas, mesmo para aqueles que não podem fabricar o
próprio corpo, a beleza não deixa de ser importante. Nas seis vezes em que
participou de missões humanitárias na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, o
cirurgião plástico e professor da Universidade Federal de Santa Catarina Zulmar
Accioli de Vasconcellos lidou com preocupações estéticas em meio à guerra. Nas
cirurgias reparadoras que fez, a maioria em crianças e adolescentes com algum
tipo de paralisia causada por tiros, encontrou pacientes com o desejo de
recuperar os movimentos e, também, de voltar a ser aceitos socialmente.
E não adianta perguntar ao doutor Zulmar qual
cirurgia é a mais importante, a mais justificável: o transplante de um polegar
na mão de um menino palestino ou o implante de silicone em uma mulher de 22
anos. O sentimento do paciente com seu problema é um só. Seu sentimento é que é
o mais importante. Porque, se antes o menino escondia a mão para não mostrar a
falta do dedo, a moça também arqueava os ombros pra esconder a falta de peito.
Aceite suas falhas
Corremos o risco de deixar de ser aquilo que somos
para nos transformarmos em um corpo sem marcas, sem história, sem humores. Em
mera imagem. Se não é bem essa sua intenção, experimente olhar o mundo através
de lentes não viciadas em cânones ou padrões. Lentes que permitam enxergar tudo
de forma sistêmica, onde não existe certo e errado nem perfeito e imperfeito.
Se tudo depende do contexto e do observador, pare e olhe para você. Mas olhe
profundamente. Lembre o que disse uma vez Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço:
Quem olha para fora sonha. Quem olha para dentro desperta.
Sonhar a gente já sonha, e faz muito bem. Mas
devemos despertar para um novo jeito de ver e estar no mundo, um jeito
intrinsecamente ligado ao nosso ser. Para isso, é preciso deslocar o foco de
atenção da aparência para a essência. Ao procurar seu traço fundamental, a soma
de características que faz você ser o que é, certamente vai encontrar muitas
coisas de que gosta e tantas outras de que não gosta. Mas é bom aceitar suas
falhas com a mesma graça e humildade com que você aceita suas melhores
qualidades, como pede a escritora e jornalista francesa Véronique Vienne
em A Arte de Viver Bem com as Imperfeições, um livro que ajuda a ver
consolo em nossos defeitos e humor em nossos erros.
Porque pode ser nos defeitos que você insiste em
esconder que se expresse sua personalidade. A imperfeição rejeitada pode ser
sua marca registrada, aquela que faz com que você seja reconhecido e lembrado.
Anular as imperfeições é como matar as diferenças. É como subscrever um
abaixo-assinado contra o estilo, a atitude, a essência. Contra toda e qualquer ideia
independente sobre beleza.
Lembre-se de que a essência só se fará presente
quando encontrar a espontaneidade de um corpo livre de travas e amarras. De que
adiantam dentes artificialmente brancos numa boca que não ri? Ponha uma flor nos
seus cabelos crespos, enfeite sua miopia com óculos coloridos. Use sua preguiça
como antídoto contra o estresse que paira no escritório, sua rigidez para
superar um momento difícil e sua gargalhada estridente para quebrar o gelo.
Aprenda que mesmo aquele que você considera seu pior defeito, em muitos
momentos, pode ser funcional. E pense que talvez as pessoas mais fascinantes
sejam aquelas capazes de ser e permanecer naturais.
Texto Elisa Correa
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